Alguma vez o Homem conseguirá ser omnipotente, capaz de vencer ou de evitar tão medonhos e tão mortais cataclismos naturais, em que as omnipotentes forças da Natureza se manifestam por vezes, ultimamente com invulgar frequência, certamente com alguma culpa por parte do próprio Homem, devido ao seu desregrado ou desrespeitador comportamento para com a aparentemente transigente mas implacável Natureza?
No tão recente, tão medonho e tão mortal caso do terremoto do Haiti, o Homem de novo estremeceu, de novo se solidarizou, mas, depois das primeiras e piores impressões, de novo, pouco a pouco, se revela apenas homem, com letra minúscula, isto é, esbanjador e não respeitador da Natureza e mau para o seu próprio semelhante, parecendo não ter consciência disso.
Quantos vivos presos nos escombros do sismo do Haiti, alguns certamente com consciência e mortal desespero da situação em que se encontram, não haverá ainda à espera de que os salvassem, não havendo no entanto, incompreensivelmente, a necessária quantidade de máquinas escavadoras para o fazer e tendo o governo local já há uma semana decidido o fim das buscas?
O Homem, afinal, apesar da sua inteligência e solidariedade, continua a ser apenas homem ...
Os Homens são apenas homens
De repente,
um imenso monstro cinzento asfixia o Sol,
vence-o
e parece rir como demónio.
O mundo fica escuro,
muito cinzento.
O Diabo semeia pavor
e solta ventos.
Escuro e mais escuro,
a terra é de cinzento sombrio,
as árvores são açoitadas por fúria de monstro,
os animais vão espavoridos
encolher-se nos buracos,
chove,
troveja,
o vento sibila desvairado
como besta enlouquecida,
dos telhados voam telhas
como se arremessadas pelo Diabo,
escuro e mais escuro,
as pessoas interrogam-se,
não sabem bem o que é,
mas sabem que é tragédia gigantesca,
sentem-na,
temem-na,
sua ciência é insignificante para se lhe opor,
encolhem-se,
escondem-se,
sombra,
o sol morreu,
há muitos feridos e mortos,
mas nem se soltam gemidos
para não enraivecer mais o monstro.
Que será dos barcos no mar?
Irão ao fundo,
haverá muitas dores e desesperos,
muitas mortes.
A terra é cada vez mais castigada,
ruge mais a medonha tormenta,
tudo é vergastado,
o chão parece quebrar-se,
e aqui e além rasga-se mesmo,
tombam mais árvores,
é o fim do mundo.
Os animais estão quietos nos buracos,
os homens,
que conquistam o espaço e revolvem a terra,
que exploram os mares,
que estudam e quase domesticam o planeta,
nada podem fazer,
há muito que não rezavam,
agora depuseram a ciência
e rezam,
rezam,
crêem em Deus,
pedem-lhe perdão os mais tementes
e o fim do cataclismo os mais frios,
são fracos os homens,
reconhecem-no,
há muito que o não reconheciam,
prometem
que no pleno regresso à vida só farão o bem,
não quererão de mais,
não serão ambiciosos,
não usarão mal sua ciência,
serão crentes e piedosos.
De repente,
a tempestade começa a rugir menos,
as árvores endireitam-se
como seres simples que foram lançados ao chão,
a tarde já é menos sombria,
clareia o céu e a terra,
o vento agoniza no seu respiro de brisa,
cessou o ribombar da trovoada,
as nuvens secaram as bocarras de chuva,
os animais espreitam à entrada dos buracos,
de olhos mansos,
e os homens sentem-se fortes,
saem de casa,
esquecidos,
vão na rua,
orgulhosos,
entram em classes distintas,
retomam sua luta,
ambição contra a humildade,
riqueza contra a pobreza.
Já são homens outra vez,
são homens,
apenas homens.
(Poema meu.)
Mírtilo