Portugal é realmente um país pluralista, sobretudo na distribuição da riqueza: uns, para se governar «à grande e à francesa», contam com milhões; outros, por sua vez, para vegetar, contam com tostões. E há uma terceira «raça» deste pluralismo económico, a que se pode chamar «classe média mas alta», que gravita em torno da «raça» dos milhões, sendo-lhe útil, tentando ascender ou aproximar-se dos milhões para ver se vem para eles mais algum «mimo», que é como quem diz mais alguns ou muitos milhares, ou até mesmo algum milhão.
E é isto a sociedade que temos, pluralista no aspecto económico, à semelhança da que tínhamos antes mas agora em escala muito maior, que foi enterrando pouco a pouco, praticamente desde o primeiro governo constitucional após o 25 de Abril, muitas das tão juradas e tão acreditadas promessas económicas e sociais da Revolução, sociedade pluralista esta demasiado agravada sobretudo nos últimos anos, com os governos a consentir mais e mais e até a impulsionar.
E agora aí tem aparecido o maravilhoso resultado desse pluralismo económico, com a desculpa, é claro, da crise, da de fora, está visto, porque cá dentro, onde os pobres sempre sentiram o doer de uma crise, não havia crise, pois os nossos governantes têm sido excelentes e nunca permitiriam semelhante coisa, isto, é, não é por eles que há crise, ou seja, para explicar melhor, não é por eles que os pobres só vegetam e não hão-de passar disso.
Quem tem fraco ou fraquíssimo rendimento, seja de salário, seja de pensão de reforma, isto é, tostões, parece que vive excomungado e desprezado pelos que ganham ou têm milhões ou aspiram a isso, mesmo que ainda bastante aquém de um milhão, sentindo aqueles, os dos tostões, coitados, enormes ou enormíssimas dificuldades para satisfazer, ainda que muitas vezes abaixo do limiar da pobreza, as suas mais básicas necessidades. E não fora a intervenção de instituições particulares de solidariedade social a favor de muitos, não podendo ser a favor de todos, ajudadas pelos comuns cidadãos em geral, através de peditórios, e teríamos, como temos, muita mais gente a passar ainda maiores necessidades e até, como também temos, mais gente a morrer à fome — mas o problema, claro, repetindo, não é dos governos que temos tido, pois têm sido bons, mas sim das pessoas necessitadas, que são pobres e não souberam enriquecer, porque há no País pluralismo económico ...
Veja-se agora, com o rebentamento das bombas económico-financeiras do BPN e do BPP, que é como quem diz com o despoletar de enormíssimas fraudes e desvios de tantos milhões naqueles bancos, o que para aí vai, além do mais que andava e ainda andará escondido ... Milhões, milhões, milhões! ...
E o pobre povo com tostões, tostões, tostões!...
E depois deste texto de cariz político-social algo irónico e satírico, transcrevo dois sonetos sobre a dificuldade de viver de quem só tem tostões.
Pensão mínima
A vida está bastante cara em Portugal
para um fraco salário ou magra pensão,
e isto aflige grande parte da população,
sobretudo com pensões mínima e social,
caso mais plangente, que fere o coração
— idosos que gastam da miséria pensional
boa parte em medicamentação vital,
ficando depois quase sem alimentação,
mais se debilitando no aspecto geral,
para peixe e carne não sobra da pensão,
uma asinha de frango é prato essencial,
com alguns bagos de arroz e um pouco de pão,
fruta murcha ou podre, barata, de animal.
E o resto?! E o Governo não mostra compaixão.
(Poema meu.)
Dentes e óculos
A Segurança Social já não tem dentista,
há que ir forçosamente a algum privado,
mas seja arrancar dente, seja dente chumbado,
muito pior se for prótese, quase elitista,
não há médio salário ou pensão que resista,
menos ainda rendimento mais degradado;
também não se resistirá, por outro lado,
com tais rendimentos, se o problema for da vista,
pois, além de consulta de preço também elevado,
lentes graduadas e armações, no oculista,
têm custo exorbitante, demasiado,
e lentes progressivas o custo é fantasista
— há que ficar com dor de dentes ou desdentado,
com mau aspecto, e apalpar com curta vista.
(Poema meu.)
Mírtilo