Muito ou quase tudo se pode dizer da poesia: das suas causas, dos seus efeitos, da sua profundidade de sensibilidade, dos seus estilos de forma e de conteúdo ... Diga-se, porém, que a poesia pode ser (é) uma arte que dignifica o espírito, valoriza-o, estática ou dinamicamente, alimenta-o («A poesia é para [o espírito] comer», dizia o poeta Ary dos Santos), fá-lo sofrer, fá-lo amar ... Poder-se-ia dizer também que, se os governos não fossem em geral só constituídos por tecnocratas, economocratas, nomocratas e plutocratas e tivessem também poetas, talvez a política fosse algo melhor, mais sensível sobretudo às pessoas mais necessitadas ou mais sofredoras, mais sentimentalizada, mais pacífica, mais gratificante para o espírito ... E o espírito é atreito a dúvidas que a política, pelo que é e como está, provoca ou agrava, fazendo diminuir a esperança de os homens terem um dia um mundo melhor, para já não dizer de todo justo, um mundo com mais sensibilidade e amor pelos outros, com liberdade de exprimir, sem qualquer receio, político ou civil, os seus íntimos ou sociais problemas, como se com qualquer pessoa se falasse para um verdadeiro amigo. Mas os governos em geral, além de não gostarem de incluir poetas, nem gostam de os ouvir, talvez até nem gostem que eles existam, e talvez também por isso os poetas não gostam de ser governantes, nem tal reivindicam, como se fosse algo que os manchasse, que lhes roubasse a alma, preferindo continuar com ela a sofrer ou com dúvidas sobre a vida e o mundo.
Dúvida
Peço aos dias, como esmola,
que me indiquem um caminho,
que me descubram a mim,
que digam como hei-de ser ...
Mas os dias passam por mim ...
Não têm pena de me deixar
na dúvida do que é a vida.
Há dias que me mostram Cristo
e segredam-me que sofra pelo bem,
que seja humilde e paciente
e terei cheio o coração
daquela felicidade
que só sentem os simples agradecidos;
outros dias dizem-me, a zombar,
que seja mármore e prazer
e mostram-me o prémio, sensuais,
dum monte de dinheiro
e dum quarto fofo e morno
com corpos quentes e nus de mulheres,
e viagens, e praias, liberdade ...;
outros dias me aconselham, como amigos,
que me vista de indiferença
e mostram-me o prémio, calmamente,
duma vida sossegada e secreta,
duma vida sem tesouros nem misérias.
E eu enrosco-me nas noites
como um cão sem dono e doente,
de sono fraco e intermitente ...
Asfixia-me a dúvida,
chora-me o desespero,
e os dias continuam fugazes,
não me dizem ao certo como hei-de ser ...
Ah, dúvida, deserto da vida!
Eterna variedade dos homens!
Eterna ignorância dos homens!
Revoltar-me? Contra quem?
Contra a dúvida? Contra o homem?
Contra mim?
Ah, dúvida, dúvida!
És como um mau alimento
que separa, dispersa os homens
em «raças» diferentes,
mas que a mim reparte em três
sem chegar a ser nenhum.
(Poema meu.)
Mírtilo